Por CJI “Vi a minha sobrinha num centro de acolhimento, trazia uma capaluna como a que estendíamos na porta, só que agora a nossa casa já não
Por CJI
“Vi a minha sobrinha num centro de acolhimento, trazia uma capaluna como a que estendíamos na porta, só que agora a nossa casa já não existe. Desde que cheguei a este centro de deslocados tenho mudanças repentinas de humor. Durante 15 minutos posso chorar, posso rir-me ou estar deprimida e logo depois com o olhar perdido no horizonte”, relata Renata, presa ainda à recordação de ver a sua filha crivada de balas no último assalto dos insurgentes ao coração da exploração do gás, em Palma.
As sequelas psicológicas que a guerra provocou em Cabo Delgado representam a parte mais desconhecida e oculta naquela região. “As pessoas reagem de forma diferente, algumas estão deprimidas, outras agitadas. Pode se detectar imediatamente um comportamento anormal. No hospital vemos em seguida que se trata de um deslocado sem perguntar-lhe de onde vem”, narra um clínico geral do Hospital Provincial de Pemba, um dos pontos da província que vem recebendo o êxodo de pessoas que fogem das acções dos insurgentes.
“Temos de encontrar soluções duráveis”
Laura Bormes, responsável de comunicação do escritório do ACNUR em Cabo Delgado disse ao CJI que a agência prestou apoio para 81 mil pessoas, um número que representa menos de 10% do total de afectados. Contudo, nos distritos de Palma e Mueda pelo menos 15% das vítimas de violência baseada no género recebe assistência. Bormes reconhece “o grande problema é a sustentabilidade do acompanhamento psicossocial do terrorismo. O Dr Antonio Saide de Carvalho, director do hospital provincial do hospital de Pemba, capital de Cabo Delgado, disse ao CJI que a província tem “ 51 psicólogos, sendo que 7 estão aqui e os restantes distribuídos pelos distritos”
Uma equipa do Instituto para o Desenvolvimento Económico e Social (IDES) liderada pelo politicólogo Fidel Terrenciano, alerta sobre as feridas invisíveis causadas pela insurgência. O mais urgente num conflito armado é tratar as feridas causadas pela guerra -lembra a ONG-, mas também é urgente enfrentar os transtornos mentais e psicológicos que ocorrem e não são vistos.
A população de Cabo Delgado percebe, mergulhada na perplexidade, como sua saúde mental vai se deteriorando seriamente. Uma constatação que, no entanto, se depara com a falta de cuidados especializados. “Durante os primeiros dias que estive aqui, tivemos casos em que abordamos as pessoas e dissemos que éramos psicólogos e queríamos ajudar e eles disseram que não queriam”, diz um assistente humanitário espanhol, psicólogo de crise e voluntário. Uma das suas tarefas é conquistar aos poucos a confiança dos deslocados, aproximando-se deles por meio da amizade e da empatia. As vítimas sentem vergonha de pedir apoio, porque – frisa a ONG, que está no terreno desde o eclodir da agressão – tinham casa própria, trabalho, vida, e agora só vivem perdas: perda de família; do bem; de tudo que costumavam fazer e amar. «Eles vivem com incerteza, com ambiguidade e sem saber como consertar as suas vidas. É muito difícil adaptar-se a uma nova vida, porque está tudo arruinado”, explica uma voluntária, Mariza Mickoi, na sua dupla qualidade de profissional de saúde e de natural de Macomia que teve de fugir. Apesar das organizações de ajuda humanitária prestarem assistência psicológica elas também reconhecem, como no caso da IDES, que o apoio não abrange 10% dos deslocados.
Após o trauma vivido, os profissionais de psicologia alertam que os menores são os que saem com mais facilidade do estado de stress a que foram submetidos, por meio de terapias artísticas, por exemplo. No entanto, para os pais, cujo único sentimento de pertença ao lar são os filhos, é mais difícil e tendem a superproteger as crianças, o que pode ter um impacto negativo sobre eles. “Não é hora de exigir dos pequenos, devemos eliminar qualquer brecha de dor e violência”, acrescenta Mariza Mickoi.
“Espero que Deus acabe com isso e possamos voltar. Agora preciso cuidar da minha saúde, devido ao stress sinto-me muito mal. Eu já tinha cabelos grisalhos uma semana depois de chegar a Paquite. Uma semana e estou assim”, diz Sérgio Sanga, um deslocado de Macomia. “Que posso dizer? Não tenho palavras para expressar o que aconteceu. Achei que era um sonho ruim. Você olha pela janela e vê balas a voar entre as casas, perto da sua, na escola que você frequentava…”, acrescenta.
As pessoas mais afectadas pelo conflito são os deslocados, porque embora tenham fugido para áreas mais seguras, são lugares desconhecidos para eles, onde têm que sobreviver com poucos recursos, encontrar alojamento ou alimentar-se. Começando do zero com a cabeça e o coração partidos, com a incerteza de não saber se um dia voltarão para sua cidade e rever seus entes queridos. A essas pessoas se somam os refugiados, que estão tentando reconstruir suas vidas em outros países. O CJI sabe que muitos moçambicanos atravessarem a fronteira para Tanzania e outros encontram-se no Malawi.
“Dentro desses grupos, atenção especial deve ser dada às famílias monoparentais, menores, idosos, pessoas com doenças crónicas, pessoas com deficiência intelectual e especialmente pessoas com transtornos mentais, porque são as mais vulneráveis e porque precisam do apoio e ajuda de seus cuidadores para poderem sobreviver”, fala Augusto Guambe, coordenador de saúde mental da Associação de Psicologia de Moçambique.organização.
A ONG destaca a necessidade de cuidados especializados e medicamentosos para proteger as pessoas com problemas de saúde mental e denuncia a falta de medicamentos nas unidades psiconeurológicas. Seu compromisso com a melhoria da saúde mental da população moçambicana é realizado por meio de intervenções de apoio em grupo, assistência psicossocial individual e apoio à atenção primária com atendimento psicológico para pacientes com somatizações.
Sempre em busca de reparar as feridas que arrastam deslocados como João, de Quissanga. “Sinto ansiedade desde o primeiro dia da guerra. As sirenes duma ambulância que ocorrem de vez em quando me causam uma espécie de pânico interno, pois não é tão fácil esquecer o que se viu ou ouviu.
A Associação de Psicologia de Moçambique existe desde 2004 e ressente-se de dificuldades financeiras para prestar assistência às vítimas do terrorismo.
Os dramas de Corane
Em Corane, onde pode se dizer que é um bom exemplo de parcelamento, os deslocados queixam-se de insuficiência de água.Tem apenas quatro fontenarias. A via de acesso para entrada é também precária e escorregadia no período de chuvoso. A energia elétrica ainda não abrangeu a todas famílias, aliás até porque, há poucas casas sendo que muitas das residências são tendas. Não tem mercado, ainda que haja serviços de M-pesa e E-mola, os poucos produtos são vendidos debaixo de cajueiros. Além de falta de oportunidades de emprego, os deslocados ainda precisam de apoio psicossocial. O centro de deslocados de Corane, distrito de Meconta em Nampula, esconde muitas histórias de pesadelo que as vítimas do terrorismo passaram a quando dos ataques.
A primeira dama de Moçambique, Isaura Nyusi, visitou o Centro de Reassentamento de Corrane, em 2021 e procedeu na ocasião, a oferta de produtos de primeira necessidade para as famílias.
“A ajuda ao próximo é um gesto de humanidade e todos somos chamados a dar a nossa mão para ajudar aos nossos irmão”.- Explicou Isaura Nyusi aos presentes no local.
As mais de seis mil pessoas, divididos em dois bairros, além partilham dores, a alegria pelo facto de não terem sido raptadas ou mesmo decapitadas tal como as outras pessoas, incluindo seus familiares. E quando as notícias, de conquista as suas terras de origem soam, entre si, paira permanecer definitivamente em Corane, apesar das dificuldades e vontade de regressar às origens para recomeçar a vida. No meio daquele universo, não se vislumbra assistência psicológica com acompanhamento….
COMENTÁRIOS